domingo, 27 de dezembro de 2015

O Parque Lage e o Museu do Amanhã



O Rio é uma cidade surreal, não só na relação estapafúrdia entre zona sul e subúrbio; morro e asfalto; brancos e pretos*; remediados e excluídos. É uma cidade carro alegórico, que prefere viver em um mundo de fantasia, em vez de enfrentar seus problemas reais. Os turistas mais esclarecidos percebem isso imediatamente, principalmente os estrangeiros vindos de países mais igualitários.

Recentemente, a cidade inaugurou um novo museu, o Museu do Amanhã, uma obra estonteante do arquiteto Santiago Calatrava, um dos mais festejados do mundo. A cereja do bolo é uma escultura do Frank Stella. Só o valor do projeto do Calatrava e o preço da escultura do Stella já seriam suficientes para urbanizar uma minifavela.

Mas não quero trocar museus por hospitais públicos e nem por redes de esgoto. Este não é ponto, não sou populista. Cada qual recebe suas verbas e só Deus sabe para quais ralos e para quais ratos o dinheiro da despesa pública é destinado.

O fato é que, uma cidade com centenas de bens culturais preciosos poderia cuidar bem dos que já existem. Isso seria mais coerente. De que vale um museu novo se qualquer pessoa minimamente culta sabe que brasileiro gosta é de inauguração - e odeia manutenção - como diria Helmut Kohl em frase célebre.

Dias desses visitei o Parque Lage, pertinho da Lagoa. O Parque Lage é um dos lugares mais incríveis do mundo: aos pés da Floresta da Tijuca, sob o Império do Morro do Corcovado, pousa uma construção digna de Veneza, onírica, para dizer pouco. Brasileiros viajam para a Europa para ver construções deste tipo...

O Palacete é emoldurado por um jardim luxuriante da Flora Atlântica e serve como a Escola de Artes Visuais. É mantido por uma OS (Oca Lage) ligada ao Governo do Estado. Esta escola de artes é parte da história da arte brasileira recente, tendo passado por lá artistas cuja relevância transcende as fronteiras do país.

Os professores e funcionários do Parque Lage não recebem salários há 7 meses. A Escola corre o risco de fechar. Enquanto isso o Governo do Estado e a Prefeitura do Rio inauguram o Museu do Amanhã, com uma escultura milionária de Frank Stella. Cinismo é pouco. Tudo bem: não nivelemos por baixo, mas como, como mesmo, uma cidade tão rica, cuja cultura é parte do arquétipo do ser brasileiro, pode ser tão pessimamente gerida ao ponto do desprezo pelos equipamentos culturais existentes e pela desfaçatez da elite (de todos os matizes ideológicos)?

Esta reflexão que faço espraia-se por todos os cantos do país, com situações semelhantes, e abrange o cerne das políticas culturais: desde o papel das leis de incentivo; dos destinatários das leis de incentivos; dos jogos das elites culturais; do papel de OSCIPs e ONGs como destinatárias de recursos públicos; da negação de acesso dos mais pobres a estes bens culturais, etc, e da relação da escola e da universidade com a cultura e com a história do Brasil.

Fico triste, mais uma vez, dentre tantas vezes que já fiquei. Será que teremos amanhã?

ps – remeterei este texto à Representação da UNESCO no Brasil.

* uso a classificação do IBGE.

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